No desconcertante L´Ascension, O Sia, O Cristal Do Milagre Chinês, o quarto livro do poeta, compositor e dramaturgo Luciano Garcez (ABC, 1972), temos uma espécie de sátira em forma de diálogo platônico, misturada à poesia, à pop-art-naïf involuntária que a internet gera (os memes, os Selfies) e à música (absolutamente indefinida em seu estilo). A obra carrega em si, nas suas 47 páginas, talvez a suma irrequieta da Poética de Garcez, que está em, obstinadamente, transgredir gêneros artísticos, estilos conformados e as linguagens, elas e nelas mesmas – trabalhar “a mão livre” (sem crase), borrando qualquer contorno diccional possível. Para Armando Lobo, “Garcez junta os estilhaços da pós-modernidade, dando um sentido profundo a eles, porque não visível – apesar de claramente perceptível”. Seu ofício de “desmanche” e “recomposição” se dá, assim, não apenas no âmbito formal – deste ou daquele experimentalismo mais em voga – mas dentro dos próprios conceitos que a obra comenta, isto é, do conteúdo dela em si. No dizer de Marcelo Tápia sobre o modus literandi do poeta-músico, haveria nele um procurado “(…) caos que almeja transformar-se por si só em esfera musical, mas insiste em permanecer no plano da palavra entreouvida, do pensamento entrecortado, da paisagem fragmentada, do tempo descontínuo – este procura transcorrer no fluxo do discurso, que, no entanto, quebra-se na condição ilógica de sua natureza transitória, interrupta, afeita à relativização dos espaços (…)”. Espaços sem pesos só para, depois, na des-obra em questão, vermos um tanto surpresos a aparição derrisória e improvável de Olavo de Carvalho, se despregando de um Gramsci muito venerável, ao som do “Canto da Sereia Espartana Sobre a Pedra de Âmbar”, que terminará num coral, com partitura inclusa, a quatro vozes, onde Hölderlin é adulterado sem remorsos como mercadoria paraguaia – de onde só poderemos concluir assim, e juntos com Mariana L. Löhnhoff, no prefácio do livro, que: “(…) Não adivinhamos sequer qual o objetivo do autor ao escrever – e descrever – suas personagens e sua obra. Apenas ouvimos ecos reduzidos da realidade nesta outra “sobrevida” literária, numa suposta transposição carnavalizada, e implacável, dela, a realidade.”
Sujeito Oculto
R$14,90Plágio. Remix. Apropriação. Qualquer que seja a palavra usada, o tema subjacente a este romance premiado com a Bolsa Petrobras de Produção Literária é roubo. Com todas as letras. Construído a partir de um corta e cola de palavras e frases subtraídas de outros livros, num processo de montagem explicitado pelo ousado projeto gráfico, Sujeito oculto cria um jogo de espelhos infinitamente recuado em que o autor nunca é quem parece ser.
Afinal, quem seria o autor deste romance senão mais um personagem, que apenas não sabe que está participando do jogo literário? Tecido a partir de citações, frases feitas e ideias de segunda mão, Sujeito oculto embaralha deliberadamente conceitos como autenticidade e originalidade, mesclando gêneros como ficção, biografia e crítica literária.
E levanta a questão: é possível ser, ao mesmo tempo, original e cópia? A resposta a essa e outras perguntas pode estar nas margens dos livros de uma aspirante a escritora que morre pouco tempo depois de ter feito um seguro de vida. Nos depoimentos de um homem que descobre por meio de frases soltas e sublinhadas a vida secreta da mulher que perdeu para sempre. Ou ainda na reação da jovem esposa que lê estes mesmos livros com outros olhos, dez anos depois. Ou nos rastros deixados por uma autora premiada que não se importa de ser vista como falsificadora, porque assim encobriria a verdadeira natureza de seu romance. Ou mesmo no posfácio de um crítico que tenta guiar o leitor em um labirinto de referências literárias e espelhamentos que encobrem um drama familiar de forte carga emocional.
A trama tem todos os elementos de um romance clássico: amor, ódio, traição, ambição, personagens marcantes, reviravoltas e até uma morte suspeita. Com o tempo, percebe-se que o enredo tradicional e a forma inovadora tratam de temas correlatos: filiação, herança e apropriação.
E roubo.
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