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Projetos de nomes como Ricardo Lísias, Daniel Galera e Augusto de Campos vão da crítica política a ficção inédita

Para o circuitão das letras, era como se a internet fosse uma categoria de base, onde se praticava a literatura moleque, com alegria nas pernas. Uma vez em um grande clube – ou grande editora –, nenhum autor ia querer voltar a jogar futebol de várzea, certo?

Errado. Em um movimento que começa a se desdobrar agora, uma série de autores já estabelecidos, premiados e elogiados pela crítica voltam a promover iniciativas nas redes, como livros autopublicados, páginas no Facebook ou newsletters literárias. A ideia de que voltaram a jogar futebol de várzea, claro, é só uma metáfora, porque não é um caso de amadorismo.

Um caso emblemático é o de Ricardo Lísias, autor de “O Livro dos Mandarins”, que ganhou o Prêmio São Paulo em 2010 e foi finalista de outros tantos troféus literários.

Desde a vitória de Bolsonaro, começou a usar o Kindle Direct Publishing, plataforma de autopublicação da Amazon, para lançar o “Diário da Catástrofe Brasileira”, projeto de livro digital em vários volumes mutantes e escritos a quente – o autor os atualiza ao sabor das mudanças políticas do país. Lísias quer tocar o projeto até o fim do novo governo e, quando isso acontecer, a ideia é tirar tudo do ar.

No “Diário”, vai reagindo ao noticiário, analisando o cenário político e criticando a intelectualidade de esquerda. Também faz análises sobre a estética do bolsonarismo, compilando memes de direita – porque vê também um problema estético no país.

O escritor, que não surgiu na internet como boa parte da nova literatura brasileira, viu na plataforma um modo de levar adiante a pesquisa formal que empreende em sua literatura – marcada pelo viés político, o diálogo com a performance e a provocação a normas e ao sistema jurídico.

“Este governo não é sólido. Ele faz uma coisa, no dia seguinte volta atrás. Precisava de um formato no qual eu também pudesse voltar atrás. O que eu mais gostaria é que esse negócio acabasse”, diz o autor, que conversa com uma grande editora para talvez publicar uma versão impressa, mas não sabe ainda se quer mesmo fazê-lo.

Já no Instagram, onde predomina a poesia motivacional de nomes como Rupi Kaur, quem apareceu foi o decano Augusto de Campos, um dos pioneiros no país no uso de novos suportes para a poesia. Em seu perfil, tem postado poemas antigos e inéditos –entre os novos, há vários de viés político, que podem ser definidos como obras de intervenção da mesma forma que o “Diário” de Lísias.

Em uma série que batizou de contrapoemas, Campos postou um que traz uma imagem de Dilma com Obama e sua mulher, Michelle, em frente ao “Abaporu”. Na legenda, escreveu: “Abaporama: que saudade eu tenho de Brasília (democrática)”. Em uma análise sobre o perfil do autor, o crítico Leonardo Gandolfi apontou a semelhança com a linguagem dos memes.

Também nesse campo da crítica política, está o escritor José Roberto Torero. Dono da página “Diário do Bolso”, ele escreve relatos fictícios do governo como se fosse Bolsonaro. E, após um crowdfunding, vai lançar uma edição impressa.

Depois de uma década em que pouco se publicava novos autores nacionais, a renovação da literatura brasileira veio da internet, na virada dos anos 2000. Dos primeiras newsletters –na época chamadas de mailzines– , depois, blogs, surgiram muitos nomes.

Era a época do zine CardosOnline, por exemplo, que revelou autores como Daniel Galera, Daniel Pellizzari e Clara Averbuck. Por isso, chama atenção que um dos lados mais pujantes desse novo movimento rumo à rede seja a volta das newsletters literárias –em tempos de redes sociais, publicar por e-mail ganha quase um ar retrô.

Galera lançou a sua em janeiro, com um ensaio contundente sobre as dificuldades que tem enfrentado para escrever nos últimos três anos. Ela se chama Dentes Guardados. Pellizzari já criou uma também, que não à toa intitulou 1999. Também com newsletters do tipo estão as escritoras Carol Bensimon (“O Clube dos Jardineiros de Fumaça”) e Simone Campos (“A Vez de Morrer”).

Em comum, alguns deles relatam saudades da internet do passado e lamentam no que a internet se transformou, ao migrar para os jardins murados das redes sociais, com a supremacia dos algoritmos e a economia dos likes.

“Hoje a internet é permeada pelos likes, algoritmos e publicidade constantes. São pilhas de informação moldadas por algoritmos que criam uma ansiedade de consumo de informação. E a leitura não é para ser uma experiência assim. Há uma estrutura de informação que não privilegia o interesse dos usuários, mas das corporações e dos anunciantes”, diz Galera, relatando cansaço do que chama de “um grande ruído”.

Pellizzari pensa parecido. Acha que, nos tempos do CardosOnline, era possível exercer a criatividade “fora de um cercadinho corporativo”.

“Não tinha essa maquininha pavloviana de likes e comentários, toda essa parafernália meio detestável. [Fazer newsletter] não é pura nostalgia, mas lembra uma época em que a internet era um lugar cheio de possibilidades legais e não uma realidade de coisas horríveis.”

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