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Em entrevista, crítica literária fala questões do marginal, da produção literária brasileira e o cânone excludente

Foi durante as andanças pelo Brasil dos anos 70 que um editor espanhol percebeu que a cada esquina tinha um poeta marginal vendendo um livrinho. A Editora Labor estava prestes a se lançar no país e queria registrar aquele movimento que viria a ser tendência.

Por destino ou sorte, no Rio de Janeiro a crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda já se debruçava sobre o tema. Era para ser. O encontro do editor e Heloísa culminou na organização da Antologia 26 poetas hoje, considerada um marco na história da literatura marginal brasileira.

Lançada em 1975, a obra conseguiu lançar poetas que até aquele momento lutavam por reconhecimento, como Ana Cristina César, Torquato Neto, Geraldo Carneiro, Waly Salomão, Chacal, entre outros.

Eu criei o Universidade das Quebradas, onde eu coordeno um projeto de periferia, então o que faço é marcar meu lugar de fala. No primeiro dia da ‘Universidade das Quebradas’, quando há 70 pessoas, artistas, poetas, teatrólogos, dramaturgos da periferia, a primeira coisa que eu digo é assim: “eu sou a Heloísa Buarque, branca, cis, de classe média-alta, professora universitária e eu moro em Ipanema, um bairro caro. Dá pra gente trocar uma ideia?

 

Brancos, de classe média-alta e universitários, os autores eram chamados de marginais por estarem à margem do sistema editorial e do cânone literário, portanto, marginal era sinônimo de independência.

Porém, assumir esse caráter marginal nunca foi fácil. Que dirá em pleno anos 1970, dentro de uma faculdade tradicional como a PUC, estudando Letras Clássicas. Era a situação de Heloísa, que, sem hesitar, aceitou o desafio.

Hoje, aos 79 anos, ela acumula muitos títulos. Em uma pesquisa rápida com seu nome, Heloísa aparece como ensaísta, escritora, editora e pesquisadora brasileira. Em 2007, recebeu o prêmio Faz Diferença; o prêmio Dom Quixote, da Cooperifa, foi considerada personalidade do ano (2013), pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ). Pelo projeto que coordena, ‘Universidade das Quebradas’, também recebeu o Prêmio FAPERJ, como Melhor Projeto de Extensão Universitária de 2010.

Nos últimos anos, vem trabalhando com o foco na cultura periférica, o feminismo e o consumo das novas tecnologias digitais. Em entrevista ao Margens, ela conta sobre sua trajetória profissional, preconceitos linguísticos e lugar de fala. Leia abaixo.  

Margens – Me conta do processo de organização da antologia “26 Poetas Hoje” e quais foram os critérios adotados?

Heloísa – Fazer a antologia foi uma “tomada de posição” e foi muito bom, porque eu pedia poemas e começavam a aparecer, eram milhares deles. Foi dificílimo escolher. Usei como critério poesias que fossem mais para o lado da oralidade, porque a gente tava naquela época de uma poesia formal, muito bela e que vinha dos concretistas. Mas, de repente, o que eu via na rua não era aquilo, era muito mais oral, muito como dizem eles “descartável”. Era uma poesia que você falava e jogava fora, não era pra ficar. M – E a repercussão foi imediata? H – Então eu reuni esse povo e foi um impacto muito grande, porque todo mundo dizia que não era poesia, que aquilo era um evento, uma ocorrência sociológica ou um movimento sociológico. Que eram coisas de contracultura, mas poesia mesmo não era. E é interessante que passados mais de 40 anos da antologia, virou cânone. Hoje, Waly Salomão, Ana Cristina, o próprio Chacal, Francisco Alvim, Cacaso, são poetas estudados nos vestibulares.

Eu ganhei uma porção de coisa, mas ser reconhecida pela Cooperifa mostrou que eu tinha feito um esforço supremo e conseguido estabelecer uma conexão de respeito com a periferia, o que me deu uma alegria gigantesca. Isso é um prêmio que premia, não é um prêmio que elogia

 

M – Como eram os poetas setentistas?

H – A marginal dos anos 70 é uma coisa visceralmente ligada à contracultura. O projeto da contracultura “pular fora” do sistema e propor alternativas. Era uma literatura marginal ao sistema editorial, ao cânone literário, mas não era marginal a sociedade. Eram todos brancos, de classe média, universitários. A diferença grave é essa. Esse tipo de literatura marginal ganhou muita repercussão, conquistou pessoas que não gostavam de poesia e que passaram a gostar por conta da poesia marginal, como a gente vê hoje. Isso porque [nos anos 70] se aliou ao rock n’roll, então os shows de poesia marginal tinham também uma banda de rock tocando, alternando.

M – O marginal setentista é parecido com o de hoje?

H – O marginal de hoje é um excluído da sociedade. Mas os dois marginais funcionaram muito no sentido de recolocar a questão da validação da poesia. Essa é uma questão que eu comprei lá no início da minha carreira e não abandonei mais, porque depois eu trabalhei com mulheres, com questão racial, com tudo, e a pergunta é sempre essa. Isso tudo envolve preconceitos linguísticos, isso tudo envolve um cânone excludente, socialmente excludente. Digo porque a garotada da contracultura dos anos 70 não estava propondo só um discurso poético novo e uma estética nova, tava propondo também um comportamento contra os padrões estabelecidos daquela hora.

M – É possível definir o que é ou não literatura?

H – É fantástica e recorrente essa pergunta: “é ou não é literatura?”. Na realidade, o cânone literário é muito inflexível. Quer dizer, ele não consegue absorver as interpelações a ele, como foi em 1976, que não era poesia e de repente entra pro cânone, ainda que muitos anos mais tarde. Eu não sou contra o cânone, eu adoro. Eu sempre trabalho o que está à margem, mas no sábado e domingo eu leio Drummond, Cabral, os Concretos, porque eu gosto muito. Mas meu trabalho não vai por aí. Meu trabalho vai pelo que tá por fora.

M –  Heloísa, você é uma professora universitária, branca e pertencente a elite carioca. Como você fez para que haja troca de ideias com a periferia sem ‘tomar a voz’?

H – Isso é uma coisa fascinante. Eu sempre me questiono: é meu lugar de fala ou não é meu lugar de fala? (…) Eu fui do Centro Popular de Cultura (CPC) nos anos 60 e a gente trabalhava ensinando a favela. Nos anos 70, eu era colega dos poetas, era classe média branca, então passou sem conflito. Então, em 1993, comecei a estudar o hip hop e a cultura da periferia e percebi que eu tinha que arranjar outro lugar para falar, porque aquele fenômeno da periferia trazia um componente muito forte desse lugar de fala. (…) E se eu chegasse ensinando a periferia, o Ferréz ou o Sérgio Vaz, por exemplo, eu ia levar “um passa fora” imediato, eu nem tinha chance. É um dado novo que faz o intelectual ter uma autocrítica e se recolocar. Eu falo quando eu posso, quando eu devo, quando eu me sinto confortável. Quando eu não me sinto confortável, eu passo a palavra.

M – A Academia sabe lidar com essa recolocação?

H – A Academia tem pouco escuta. Ela não suporta errar porque tem um capital que a preserva. Eu acho que os professores têm medo de coisas novas, de embarcarem no erro, perderem o prestígio e o valor da sua pesquisa. É uma coisa de capital acadêmico que é muito mesquinha.

M – Então seu projeto ‘Universidade das Quebradas’, que promove o diálogo entre a academia e artistas da periferia, foi um contraponto, certo?

H – Eu criei o Universidade das Quebradas, onde eu coordeno um projeto de periferia, então o que faço é marcar meu lugar de fala. No primeiro dia da ‘Universidade das Quebradas’, quando há 70 pessoas, artistas, poetas, teatrólogos, dramaturgos da periferia, a primeira coisa que eu digo é assim: “eu sou a Heloísa Buarque, branca, cis, de classe média-alta, professora universitária e eu moro em Ipanema, um bairro caro. Dá pra gente trocar uma ideia?” Eu faço assim de cara e isso funciona muito bem, porque eu percebi que é um dos únicos jeitos de trabalhar produtivamente com esses lugares de fala muito diferentes: é criando parcerias. Eu faço uma coisa, você faz outra e a gente produz uma terceira.

M – Qual foi a sensação em ser reconhecida com o Prêmio Quixote, da Cooperifa?

H – Foi o prêmio mais importante da minha vida. Fui reconhecida, porque eu tinha um respeito. Eu não tomei a voz deles, eu dei a voz pra eles e dei o que eu tinha, o meu saber editorial e o meu poder de chegar no centro. Eu ganhei uma porção de coisa, mas ser reconhecida pela Cooperifa mostrou que eu tinha feito um esforço supremo e conseguido estabelecer uma conexão de respeito com a periferia, o que me deu uma alegria gigantesca. Isso é um prêmio que premia, não é um prêmio que elogia.

Entrevista concedida a Fernanda Valente, publicada originalmente no site margens.com.br em 27/03/2018

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